3. Eleições 2022 e a laicidade do Estado - Jornal da Ciência
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3. Eleições 2022 e a laicidade do Estado

É preciso ter claro que, em termos práticos, só é laico o Estado que se mantém neutro diante das disputas entre as instituições religiosas e garante o exercício da liberdade de crença e de manifestação”, ressalta Luiz Antônio Cunha, professor emérito da UFRJ e coordenador do Grupo de Trabalho Estado Laico da SBPC

A poucos dias da eleição presidencial, talvez a mais decisiva de toda nossa história, os dois candidatos à frente das pesquisas têm posições distintas em muitos assuntos, inclusive no deste texto. Lula tem se manifestado pró-laicidade do Estado, mas o passado não corrobora essa auto-declaração, e sua equipe mobiliza pastores para dialogar com evangélicos em busca de apoio. Bolsonaro, por sua vez, mantém o dito e o feito na campanha de 2018, que Estado laico é uma “historinha”, o Brasil é cristão.

Deixemos de lado os discursos bem-intencionados, que propalam que todas as religiões pregam a tolerância e a paz, e vamos aos fatos. Católicos e evangélicos são os protagonistas maiores do embate religioso, que vaza para o campo político, cada lado pretendendo instrumentalizar o Estado para obter recursos e exercer poder religioso e político. E daí, para tutelar a moral coletiva. Importantes, mas dominadas, são as comunidades de cultos afro-brasileiros, que não dispõem do grau de institucionalização dos cristãos (maior entre os católicos, evidentemente) e não têm projeto de poder político. No passado, os adeptos desses cultos buscavam no Catolicismo uma cobertura de caráter sincrético para se livrarem da repressão. Hoje eles são alvo direto do proselitismo evangélico e até mesmo da violência de pastores e crentes contra pessoas e terreiros do candomblé, da umbanda e outras denominações.

Na busca por manter sua posição, a Igreja Católica obteve vitórias importantes, sempre com ajuda presidencial e sua base parlamentar. No governo Fernando Henrique, o ensino religioso pôde usar recursos públicos e foi qualificado de “parte integrante da formação do cidadão” na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, algo sem similar no mundo ocidental. No governo Lula, foi promulgada a inédita concordata com o Vaticano, que não tivemos nem no tempo do Império, quando o Catolicismo era religião oficial. O acordo estabeleceu privilégios em áreas como educação, planejamento urbano, tributos e outras.

No governo Lula, as Igrejas Evangélicas Pentecostais foram beneficiadas pela lei 10.825/2003, que modificou o Código Penal dando personalidade própria às organizações religiosas e impedindo o poder público de lhes negar o reconhecimento e o registro dos seus atos constitutivos. Bolsonaro destinou a essas Igrejas substanciosas vantagens fiscais e anistiou multas devidas à Previdência Social. Nomeou pastores para ministérios, a FUNAI e o STF. Em todos os anos de seu mandato, participou das Marchas para Jesus em várias cidades, em ritmo de comício eleitoral. Baixou decreto incluindo os templos religiosos como prestadores de serviços essenciais, podendo funcionar livremente, o que suscitou uma queda de braço com governadores e prefeitos.

As Igrejas Católica e Evangélicas Pentecostais unem suas forças em importantes frentes políticas, como no combate à presumida “ideologia de gênero”, incidindo especialmente na saúde e na educação. O rendimento eleitoral foi enorme, tanto no golpe de Estado de 2016, quanto na eleição de Bolsonaro para a Presidência da República em 2018, mediante a estigmatização da presidenta Dilma e do candidato Haddad – ambos seriam responsáveis por um fantasmagórico “kit gay”, supostamente distribuído nas escolas para a erotização precoce e perversa das crianças.

A lista dos atentados à laicidade do Estado vai até o plano internacional. Bolsonaro não teve pejo em apelar para o combate à “cristofobia”, ao discursar na abertura da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2020. De fato, há fobia contra cristãos em alguns países, mas não no Brasil. Aqui a fobia e a discriminação atingem as comunidades de cultos afro-brasileiros, perpetradas sobretudo pelos adeptos de Igrejas Evangélicas Pentecostais, portanto por cristãos.

Bem sabemos que construir o Estado laico não é atribuição exclusiva do presidente da República – para isso contam e muito os Poderes Legislativo e Judiciário, assim como as instituições da Sociedade Civil, inclusive as instituições religiosas. É auspicioso o surgimento, no âmbito dos cleros católico e evangélico, assim como entre os fiéis, de movimentos contra a simbiose política-religião.

É preciso ter claro que, em termos práticos, só é laico o Estado que se mantém neutro diante das disputas entre as instituições religiosas e garante o exercício da liberdade de crença e de manifestação. Pois o Estado brasileiro nem é neutro, pois instrumentaliza e é instrumentalizado pelas igrejas, nem garante a liberdade de crença e de culto para os afro-brasileiros. Enquanto isso, Bolsonaro e Lula estão de olho no voto evangélico pentecostal. Um pretende manter o capital político acumulado nesse segmento, onde tem vantagem. O outro pretende seduzi-lo em busca de apoio, por enquanto minoritário. É certo que a conta será cobrada em várias moedas.

Se a campanha não mudar de rumo, perderemos uma oportunidade preciosa para elevar a cultura política do povo brasileiro, qual seja a percepção do Estado laico como a única forma política capaz de garantir a liberdade de crença, de culto e de manifestação para religiosos e não religiosos – condição necessária para a democracia que tanta falta nos faz.

Sobre o autor:

Luiz Antonio Constant Rodrigues da Cunha é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Grupo de Trabalho (GT) da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre o Estado Laico. Tem publicações sobre os seguintes temas: gênese e formação dos sistemas educacionais, políticas educacionais, ensino técnico e ensino superior. Desde 2006, a laicidade do Estado constitui seu objeto principal de pesquisa.

*O artigo expressa exclusivamente a opinião do autor.