28. Quem disse que água e óleo não se misturam? - Jornal da Ciência
JC Notícia
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28. Quem disse que água e óleo não se misturam?

“Os compostos tóxicos oriundos da degradação das placas do óleo que atingiram a costa brasileira continuam e continuarão afetando o ambiente aquático”, afirmam especialistas em Ecotoxicidade, em artigo para o Jornal da Ciência

No último dia 30 de agosto, as praias do Nordeste do Brasil foram tomadas por uma camada de petróleo cru, cuja origem até agora não foi divulgada. Preocupantemente, o aparecimento das manchas de petróleo ainda não cessou e continua se alastrando pela costa brasileira. Até o momento, já foram registradas a ocorrência de placas em cerca de 749 regiões, as quais estão sendo afetadas pelo óleo, distribuídas em 123 municípios. Apesar do acidente ter primeiramente atingido o Nordeste, mais recentemente se expandiu para a região Sudeste, atingindo os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro. No total, já são 11 estados atingidos pelo óleo. O desastre é tão grande que foi considerado pelo IBAMA como o maior acidente ambiental já registrado no Brasil em extensão, percorrendo uma distância de aproximadamente 2.800 km. Talvez, a proporção deste desastre para o meio ambiente não aparente tão extensa como é na realidade. Com certeza, trata-se de uma tragédia sem precedentes e irreparável para a sociedade brasileira. Além dos impactos socioeconômicos negativos, tais como a redução das atividades pesqueiras, envolvendo a pesca de mariscos, camarão e peixes, ou mesmo para o mercado do turismo, os animais marinhos encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Organismos tais como corais, peixes, aves, crustáceos, peixes-boi e tartarugas marinhas encontram-se criticamente ameaçados pelas manchas de óleo, tanto pelo impacto direto do óleo no seu corpo como pela alteração do seu habitat e de sua alimentação.

Dentre as medidas mitigatórias adotadas até o momento, estão a utilização de boias de contenção e a remoção das placas de óleo de forma física realizada por soldados do exército brasileiro, fiscais do IBAMA ou mesmo pela população local que, incansavelmente, está se colocando em risco para realizar o trabalho de remoção da camada superficial do óleo. Estas medidas são importantes porque removem uma parte do óleo, mas tem um cunho meramente estético, pois ao não mais ver a presença da mancha, a população adquire a sensação de que o problema foi removido, ou seja, que não há mais perigo na água. Mais fácil que um derramamento de petróleo menos denso e difícil de conter, o material que vem sendo retirado das praias brasileiras consistem em grandes placas densas de petróleo, as quais são manipuláveis e podem ser removidas superficialmente. Porém, esse material em contato com a água, sofre intempéries e libera no ambiente frações tóxicas do petróleo cru, as quais somos incapazes de observar a olho nu. Uma vez que algum derivado do petróleo entra em contato com o ambiente aquático, ele sofre uma série de processos bióticos e abióticos que alteram sua composição física e química, formando a fração solúvel do óleo em água – FSA. Entre as intempéries ambientais às quais esses compostos estão sujeitos, podemos incluir processos de evaporação, dispersão, dissolução, emulsificação, fotodegradação, biodegradação microbiana e sedimentação, sendo que muitos desses processos podem aumentar a biodisponibilidade desses compostos na coluna d’água e facilitar sua absorção e ingestão pelos organismos aquáticos.

A FSA é mais tóxica do que o óleo derramado originalmente. Isso tem explicação nas mudanças que ocorrem nas características físico-químicas do petróleo, que passam a conter principalmente hidrocarbonetos aromáticos acomodados em água, como os monoaromáticos, frequentemente denominados de BTEX (benzeno, tolueno, etilbenzeno e xileno) e os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), além de fenóis e compostos heterocíclicos contendo nitrogênio, enxofre e concentrações traço de metais com o ferro, níquel, cobre e vanádio. Além do mais, a composição química do petróleo é diferente dependendo do local geográfico de onde ele é extraído. A maioria dos hidrocarbonetos é composta de contaminantes persistentes no ambiente aquático devido à sua propriedade hidrofóbica e devido à baixa volatilidade dos compostos com alto peso molecular, ou seja, sua baixa capacidade de “evaporar”. Esses compostos também apresentam elevada capacidade de se adsorver, ou seja, “grudar” em partículas suspensas, o que favorece seu acúmulo tanto no sedimento dos ambientes quanto nos tecidos adiposos dos organismos, quais sejam, as gorduras tanto externas (muco dos organismos) como internas (membranas, lipídeos, etc.). Mais profundamente, uma vez atingindo o interior das células, os hidrocarbonetos passam por um processo de biotransformação realizado por enzimas que transformam esses compostos tóxicos em outros produtos facilmente excretáveis; para tanto, essa biotransformação promove uma série de reações de oxidação, redução, hidrólise e de conjugação, levando à formação de metabólitos altamente reativos (muitas vezes mais tóxicos que os compostos parentais) envolvidos na promoção do estresse oxidativo que promove danos celulares e ao DNA, o que os torna uma classe particular de contaminantes, uma vez que grande parte da sua toxicidade é atribuída ao mecanismo de desintoxicação da própria célula.

De acordo com diversos estudos, a exposição dos organismos aquáticos aos hidrocarbonetos do petróleo e seus derivados pode causar efeitos genotóxicos, mutagênicos e carcinogênicos, ou seja, causar câncer, e podem também causar prejuízo no sucesso reprodutivo das espécies uma vez que podem atuar como disruptores endócrinos. Essa exposição pode, ainda, causar alterações nas funções cardio-respiratórias e comportamentais, lesões nos tecidos respiratórios e do fígado e indução de estresse oxidativo, o qual causa envelhecimento celular e resulta em danos tão graves como os dos PAHs, incluindo evolução para cirrose e câncer.

Apesar deste cenário preocupante e alarmante, o governo brasileiro, especialmente o Ministério do Meio ambiente, autoridade legalmente responsável em coordenar um plano de ação, foi omisso e negligente em desenvolver uma estratégia rápida e mais eficiente de ação em relação ao derramamento deste óleo no nordeste e sudeste, sendo que somente após cinco semanas a partir da primeira notícia da presença do óleo nas praias, foi que passou a considerar essa ocorrência um problema ambiental.

O Brasil sempre teve um plano de contingenciamento rápido a ser aplicado e este foi ignorado pelo governo atual.

Além disso, a Secretaria de Pesca também declarou, de forma irresponsável, que “… o peixe é um bicho inteligente, quando ele vê uma manta de óleo ali, capitão, ele foge, ele tem medo. Então, obviamente que você pode consumir seu peixinho sem problema nenhum. Lagosta, camarão, tudo perfeitamente sano…”!

A desinformação e a irresponsabilidade destas declarações, podem ter causado e ainda causar danos maiores à população, pois levam ao consumo não saudável do pescado, podendo resultar em uma epidemia de doenças ou mesmo intoxicação das populações brasileiras que habitam e visitam a região costeira pelo consumo do material proveniente dessas áreas. Os peixes, assim como qualquer outro vertebrado, ao perceber que o ambiente não está propício para sua sobrevivência apresentam comportamento de fuga. No entanto, uma vez que a FSA está dissolvida no ambiente, o peixe não tem como “fugir” e é contaminado. Além dos peixes, os crustáceos, outros frutos do mar e os corais (organismos sésseis), não vão ser poupados de contaminação também, prejudicando não apenas as espécies consumíveis pelo homem, mas toda a biodiversidade que compõe aqueles ecossistemas aquáticos, podendo ter contato com HPAs, os quais quase nunca se encontram na água, mas ligados aos organismos e aos sedimentos. A vulnerabilidade dos organismos invertebrados é maior ainda e a salinidade da água do mar aumenta as forças de ligação com porções orgânicas contidas no ecossistema.

Petróleo mistura com água, sim!

Uma vez que  no Brasil não existe regulamentação sobre limites máximos desses compostos nos alimentos, com exceção de algumas resoluções, tais como: Resolução RDC nº 2/2007 que regulamenta a quantidade de HPAs em aditivos aromatizantes em alimentos (30µg/kg), da Resolução RDC n°281/2003 que regulamenta a quantidade de HPAs no azeite de oliva (2µg/kg), e com exceção da Portaria do Ministério da Saúde n°518/2004 que regulamenta sobre HPAs em águas potáveis (0,7 µg/L), é necessário que haja uma normatização imediata para a atual situação dos ambientes atingidos pela mancha. A população deve ser alertada sobre os riscos de contaminação humana e possível ocorrência de doenças graves tais como cirrose hepática e até câncer.

É urgente que o governo busque reunir especialistas e que estes sejam ouvidos. O Brasil tem uma Sociedade de Ecotoxicologia, onde é possível buscar cientistas reconhecidamente aptos a entender o que decorreu deste acidente, e sugerir um plano de ação, considerada a complexidade e dinamicidade dos ambientes atingidos. O monitoramento de áreas susceptíveis à contaminação por petróleo foi realizado por muito tempo por cientistas brasileiros na Amazônia, na costa Atlântica, bem como em todos os arredores de poços de perfuração de petróleo e seu escoamento por oleodutos e por balsas até próximo a refinarias. Sempre houve, por parte das companhias de exploração e do governo, uma preocupação muito grande com possíveis acidentes. Portanto, há cientistas e técnicos com competência suficiente para gerenciar essa crise ambiental sem precedentes no país.

Muito embora estejamos publicando este texto após uma reunião ocorrida há dois dias (muito extemporaneamente ao acidente) com especialistas para formular um plano de ação, acreditamos já haver hoje informações suficientes para que políticas públicas sejam formuladas e aplicadas de forma efetiva e rápida após um acidente dessa proporção para proibir o consumo do pescado até sua avaliação. Já há elementos, inclusive, para que um processo de regulamentação de limites legais e seguros de consumo dessas substâncias possa ser aplicado como lei no pescado para o Brasil, visando a segurança alimentar futura da população.

Os limites para HPAs em pescado fresco no mundo seguem a resolução da união europeia. Há, também, uma tabela da IARC (do inglês, International Agency for Research in Cancer – Agência Internacional de Pesquisas em Câncer) a qual descreve os compostos que são carcinogênicos para humanos, a qual inclui os HPAs. Além disso, a sazonalidade, ou seja, o período do ano, influencia todo o processo de intemperismo do óleo, seja de que composição for, na água, e pode mudar durante o decorrer do ano afetando mais os organismos e ecossistemas aquáticos da região.

Portanto, clamamos por uma rápida conscientização do governo e busca de soluções imediatas junto aos órgãos competentes para que os mesmos possam diagnosticar os danos ambientais, reduzir ao máximo os danos à segurança alimentar das populações e mitigar os problemas sociais que ocorreram até o momento e continuarão a ocorrer caso nada seja feito.

Acreditamos que as consequências desse acidente são incalculáveis para a sociedade brasileira, porém a investigação e punição devida a quem causou esse acidente é de extrema importância para que haja sanções compatíveis para evitar crimes ambientais como esse no futuro. Nosso país não pode retroceder ou prevaricar nesse aspecto pois os avanços científicos e tecnológicos brasileiros desde que iniciou a exploração de petróleo no interior e no litoral brasileiros são incontáveis e incontestáveis.

Por fim, louvamos as recentes iniciativas e editais publicados pelo CNPQ, FACEPE e FAPESP para que pesquisadores estudem as consequências deste acidente e proponham medidas para mitiga-las.

Sobre os autores:

Assinam esta nota especialistas em Ecotoxicidade, com experiência em monitoramento ambiental em rotas de oleoduto e transporte de petróleo, além de conhecimento teórico prático experimental do efeito do petróleo sobre organismos aquáticos bem como estudo de casos de pequenos derramamentos de óleo em água doce e marinha:

Dra. Vera Maria Fonseca de Almeida-Val (pesquisadora, INPA – AM)

Dra. Adriana Regina Chippari-Gomes (pesquisadora, UVV – ES)

Dra. Helen Sadauskas-Henriques (pesquisadora, UNISANTA – SP)

MSc. Susana Braz Mota (doutoranda, PPG-BADPI, INPA – AM).